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Sobre “Fake News” e Patrimonialismo: o estamento burocrático e as redes sociais



Encontra-se atualmente em atividade no Congresso Nacional a CPI das Fake News, cujo objetivo declarado é o de apurar a possível disseminação de notícias falsas durante a campanha eleitoral de 2018. A expressão fake news se tornou comum nos dias de hoje, sendo normalmente associada à Internet e ao fenômeno das redes sociais; é certo, porém, que, ao contrário do que se pensa, a disseminação de notícias falsas, em períodos eleitorais ou fora deles, é um fenômeno muito anterior ao Facebook, ao Twitter e ao Whatsapp.
Acaso o prezado leitor já teria ouvido falar em Yuri Bezmenov? Se nunca ouviu, sugiro que faça uma rápida pesquisa por seu nome na Internet, onde há diversos vídeos que reproduzem suas palestras e entrevistas. Bezmenov foi por muito tempo um funcionário da RIA Novosti, agência de notícias criada pela extinta União Soviética, onde trabalhava em cooperação com a KGB, o serviço secreto daquele país. Em 1970, desertou para o Ocidente e, nos anos 1980, proferiu palestras e concedeu entrevistas explicando como os soviéticos disseminavam desinformação e propaganda política mundo afora. Certa vez, em entrevista a Edward Griffin, Bezmenov deu detalhes sobre um grande sistema de cooptação e manipulação de jornalistas e intelectuais que tinha por objetivo promover uma boa imagem do regime socialista no mundo ocidental.
No auge da Guerra Fria, explicou ele, os candidatos a correspondentes internacionais eram cuidadosamente selecionados pela burocracia soviética, de modo que só fossem admitidos jornalistas com perfil considerado conveniente. O esquema era bastante complexo e envolvia desde o simples fornecimento de informações falsas aos correspondentes até a criação de uma revista destinada a disseminar desinformação dentro dos Estados Unidos. Como se vê, as fake news não são um assunto novo. 
Lembremos também um caso ocorrido no Brasil: será que alguém ainda se recorda do Dossiê Cayman? Hoje esquecido, esse dossiê consistiu em um conjunto de documentos falsos, produzido com o intuito de prejudicar determinados candidatos às eleições de 1998 e que foi bastante divulgado à época. Há mais de 20 anos, portanto, já se discutia no Brasil o tema das informações falsas na esfera política.
Ora, mas se o assunto é tão velho, qual o sentido de o discutirmos agora como uma novidade da era das informações? A resposta não é tão simples.
Em sua clássica obra Os Donos do Poder, lançada originalmente em 1958, Raymundo Faoro narra a história do patronato político brasileiro. Faoro demonstra com riqueza de detalhes que, já nos tempos do Brasil colonial, formara-se em Portugal um grupo de influência que orbitava ao redor da Corte e que, desde então, participava ativamente na condução dos assuntos de governo. Esse grupo era o estamento burocrático – expressão trazida de Max Weber – e se caracterizava por se apropriar das instituições públicas e administrá-las segundo seus interesses privados – prática essa denominada patrimonialismo. 
O estamento burocrático sobrevivia fosse qual fosse o rei coroado e aportou no Brasil com a colonização, tendo atravessado incólume a Independência e a República. No século XX, sobreviveu a todas as mudanças institucionais brasileiras: a tomada do poder por Getúlio Vargas em 1930, a queda de Vargas em 1945, o regime militar de 1964 e a Nova República hoje vigente – aliás, não há exagero em se afirmar que essas mudanças institucionais foram, em geral, possibilitadas por acordos e acomodações dentro do próprio estamento. 
No Brasil de hoje, o estamento permanece incrustado nas instituições públicas e sua existência é favorecida pelo próprio inferno de nossa imensa burocracia: em meio a um Estado grande e fortemente regulamentador, é muito fácil para o grupo que o controla desde dentro criar dificuldades para todos a fim de vender facilidades a alguns. Engana-se quem acredita que os donos do poder, entre nós, sejam os membros de uma “elite econômica”: na verdade, os que mais enriquecem no Brasil são geralmente os amigos do rei, isto é, aqueles que têm conexões com o estamento e recebem seus favores – pagos a preço de ouro, é claro. A elite econômica depende do estamento.
Ocorre, porém, que o fenômeno das redes sociais ensejou uma verdadeira ameaça ao estamento: com uma conta no Facebook ou no Twitter, cada indivíduo ganha sua própria tribuna virtual, em que pode divulgar conteúdos à revelia do grupo estamental. As redes sociais são, de fato, um instrumento democrático e fortalecedor da liberdade de expressão e, por isso mesmo, são o terror dos donos do poder. Afinal, de nada adianta ao estamento patrocinar ou produzir conteúdos e criar narrativas de seu interesse se um indivíduo qualquer puder desmontá-los por uma simples postagem, que, por sua vez, será velozmente replicada entre centenas ou milhares de pessoas. 
As eleições presidenciais de 2018 efetivamente comprovaram o poder das redes sociais, nas quais o presidente Jair Bolsonaro era o candidato com maior presença. Nessa nova realidade, os instrumentos que tradicionalmente mais influenciavam os resultados eleitorais – o fundo partidário, o tempo de televisão e as doações para o fundo de campanha – se mostraram simplesmente inúteis para entregar a cadeira presidencial aos candidatos de grandes partidos. 
Não é por outro motivo que hoje tanto se fala em regulação das redes sociais. Incomodado com a nova ameaça, já faz tempo que o estamento deseja utilizar a estrutura do Estado para policiar essas redes. Convenhamos: há muito pouca gente preocupada com os rumos da democracia brasileira, a lisura de nossas eleições ou a solidez de nossas instituições. Tudo o que se quer é assegurar ao estamento o controle das redes sociais para que estas não mais o perturbem; e discutir agora as fake news como se fossem uma grande novidade no mundo político é apenas um pretexto para que esse objetivo seja atingido. Não se espantem: após a CPI das Fake News, as investidas contra a liberdade ainda imperante nas redes serão cada vez mais fortes e terão o objetivo, supostamente louvável, de “proteger o eleitor” contra informações falsas. 
E não se pode deixar de notar que as atividades da CPI se desenrolam paralelamente ao estabelecimento do fundo eleitoral: o estamento atua em duas frentes, tentando, de um lado, fortalecer as campanhas de seus próprios candidatos e, de outro, neutralizar qualquer opositor por meio de um controle sobre as redes sociais.
Afirma a Constituição brasileira, em seu artigo 1º, parágrafo único, que todo o poder emana do povo. Note, porém, o leitor que o preâmbulo da Carta se inicia com as seguintes palavras: “Nós, representantes do povo brasileiro”. Se o poder emana do povo, está concentrado nas mãos do estamento. O texto é bem distinto daquele com que se inicia a Constituição americana: “Nós, o povo”. Que essa pequena comparação nos motive, aqui, a uma reflexão: se as redes sociais vierem mesmo a ser regulamentadas em nome do “combate às fake news”, o povo brasileiro permanecerá à mercê de um estamento burocrático que dele se aproveita ao mesmo tempo em que diz representá-lo.
(*) Felipe Cola é professor de Direito e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais.

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