Da amizade às acusações: a história dos presos pela morte da família carbonizada em São Bernardo
Com a mochila nas costas, uma estudante de 13 anos esperava sozinha o ônibus passar pela Rua Valter José Alves, uma lateral do Fórum de Praia Grande, na Baixada Santista. Em plena tarde de sexta-feira, nem o movimento de carros e de pedestres em volta do Tribunal inibiu dois jovens, não muito mais velhos, de 18 e 19 anos, de se aproximarem e anunciar o roubo.
Diziam estar armados e queriam a mochila. A garota não ofereceu resistência, mas fez um pedido aos ladrões: “Deixa só eu tirar os documentos”. Foi nesse momento que uma testemunha estranhou aquela movimentação e avisou um guarda-civil que estava de serviço perto dali. Os agentes avistaram os suspeitos correndo, conseguiram prendê-los em flagrante e recuperaram a bolsa. A história da arma, descobriram ao revistá-los, era blefe.
O assalto frustrado aconteceu no dia 27 de novembro de 2015 e motivou o primeiro processo criminal contra Juliano de Oliveira Ramos Júnior, hoje com 22 anos. Preso considerado de “bom comportamento”, ele logo progrediu para o regime aberto e teve a pena extinta, após cumprimento, em agosto de 2019. A liberdade, no entanto, durou pouco.
Desde o início deste mês, Juliano voltou à cadeia - desta vez, investigado por crime mais grave. Ele é um dos suspeitos de fazer parte da quadrilha que roubou, torturou e matou o casal de empresários Romuyuki e Flaviana Gonçalves, de 43 e 40 anos, e o filho caçula, Juan Victor, de 15, cujos corpos foram encontrados carbonizados em uma estrada de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, no fim de janeiro.
O crime interrompeu a história de ascensão financeira da família e chocou, sobretudo, além da violência, pela suspeita de participação da filha mais velha do casal, Anaflávia Gonçalves, de 24, e da mulher dela, Carina Ramos, de 26, que também estão presas. Os outros detidos são Jonathan Fagundes Ramos, de 23 anos, que é irmão de Juliano, e o vizinho deles Guilherme Ramos da Silva, de 19. A Polícia Civil deve indiciar os cinco por homicídio qualificado.
Juliano era o único do grupo com antecedente criminal. Durante a investigação, ele foi responsável por delatar Guilherme e apontar o envolvimento direto de Anaflávia e Carina nos crimes. Em interrogatório, o suspeito ainda tentou livrar o irmão e indicou um homem inocente no lugar.
O depoimento provocou a reação dos demais envolvidos e deu início a trocas mútuas de acusações no inquérito. Para se defender, os outros investigados alegam ter concordado “apenas” em assaltar a família Gonçalves, mas negam participação nas mortes. Para eles, os assassinatos só deveriam entrar na conta de Juliano e Jonathan.
Antes da investigação, no entanto, o convívio entre os cinco era bem diferente. Todos são vizinhos no Jardim Santo André, favela composta por vielas, ruas íngremes e residências, na maioria das vezes, sem revestimento. Segundo informação de policiais, o local seria controlado pelo tráfico de drogas.
Lá, eles costumavam frequentar um a casa do outro e mantinham relação de amizade. A ponto de, mesmo sem grande experiência no crime, tramarem juntos o plano para roubar R$ 85 mil que supostamente os Gonçalves guardavam no cofre de casa, em um condomínio fechado de Santo André, também no ABC.
Os amigos
Em 2018, Anaflávia interrompeu um casamento para iniciar o namoro com Carina, através de quem conheceu os demais envolvidos no crime. As duas passaram a morar juntas nas proximidades da Rua Toledanas, no Jardim Santo André, de onde ela saía todos os dias, de manhã cedinho, para trabalhar em uma loja de perfumes que Romuyuki e Flaviana haviam aberto em um shopping de São Bernardo do Campo.
As vendas no quiosque iam bem e o resultado se refletia em comissões, cada vez mais gordas, para Anaflávia. Também era comum a filha presenciar Flaviana fazer a contabilidade da loja ou pagamentos a outros funcionários ao fim do expediente.
Segundo parentes, a primeira vez que viram Carina foi no hospital em 2018, quando as duas iam visitar a bisavó de Anaflávia, então internada na UTI. “Anaflávia apresentou como uma amiga. Carina me tratou bem, me deu até R$ 50 na época: ‘Fique aí, dona Vera, para tomar um café’”, conta a avó materna Vera Lúcia Conceição, de 57 anos.
Com o passar do tempo, notaram que a mulher seria responsável por fazer Anaflávia ir se afastando do convívio familiar. Estranharam, ainda, outra questão: ninguém sabia informar muito bem qual profissão Carina exercia. Para uns, ela chegou a mentir que era delegada. Para outros, disse ser enfermeira.
Sobre a vida da investigada, a polícia sabe que Carina fez curso técnico de necropsia. Também sabe que a mãe dela, Josiane Ramos, tinha passagem por furtos e foi encontrada morta no seu apartamento em janeiro de 2017. Mais tarde, um médico atestaria causa natural por câncer de estômago.
Nos últimos tempos, Carina tocava uma lanchonete no bairro. “Olha a novidade que está chegando para vocês. Mundo das Delícias. Temos: bolo no pote de diversos sabores, tortas, lanches natural (sic), mousse, delícia de abacaxi, bolo da vovó”, escreveu Anaflávia no Facebook, fazendo propaganda do negócio em janeiro do e 2019. A postagem foi compartilhada por Jonathan.
De uma família de, ao todo, dez irmãos, Jonathan e Juliano são primos de Carina e estavam desempregados. Já a mãe deles mora em Praia Grande, onde Jonathan, o último a ser preso, ficou escondido antes de se entregar à polícia na semana passada.
Na rede social, os dois irmãos tinham costume de postar selfies ostentando óculos da Oakley e correntes no pescoço. No ano passado, Jonathan publicou a foto exibindo uma bicicleta e um carro popular antigo. Na legenda, escreveu:“Agradeço a Deus pelo que conquistei até agr… mas peço a Ele pra me da sabedoria pra conquista MT mais (sic)”. O perfil de Juliano curtiu.
Morando um perto do outro, Anaflávia via os primos de Carina com frequência. Segundo advogados que atuam no caso, a ideia do assalto teria surgido após Juliano notar que as duas estavam conseguindo comprar eletrodomésticos e utensílios para equipar o apartamento e a lanchonete. Isso teria despertado interesse sobre a condição de vida da família Gonçalves.
Segundo a defesa de Anaflávia e Carina, o casal teria negado as primeiras propostas do roubo, mas mudou ideia por “questões financeiras”, não especificadas. A ideia era pegar o dinheiro e repartir igualmente entre todos os integrantes da quadrilha.
Para o assalto, os quatro resolveram chamar também Guilherme Silva, um jovem que trabalhava em um lava-rápido da comunidade. “Ele vem de uma família muito humilde. O pai e a mãe são nordestinos e, muito trabalhadores, vieram para São Paulo. Ele é filho único. Teve uma criação simples, mas nunca faltou nada”, diz o advogado criminalista Leonardo José Gomes, que o representa.
Segundo o defensor, Carina era a pessoa com quem Guilherme teria mais proximidade do grupo. Na visão de José Gomes, ele teria aceitado participar porque “cresceu os olhos” com a possibilidade de dinheiro fácil. “Foi um desvio de conduta: quis pegar um atalho”, afirma. “Mas qualquer pessoa, olhando de fora, percebe que foi tudo mal planejado. O roubo, que deu errado, foi mal planejado. Até mesmo os homicídios e a forma de se livrar dos corpos foram mal planejados.”
As desavenças
A Polícia Civil considerava Anaflávia e Carina suspeitas desde o primeiro dia da investigação. Chamadas a depor, elas inventaram que a família estaria devendo dinheiro a um agiota e que o homem seria o possível mandante do crime, mas acabaram caindo em contradição e tiveram a prisão temporária decretada pela Justiça.
Em novo interrogatório, Carina mudou a versão. À polícia, disse que estava na casa dos sogros quando três indivíduos armados entraram e renderam a família. Também afirmou que um dos criminosos seria o seu primo Juliano, mais conhecido por Buiú ou Beiço.
Embora não tenha acreditado plenamente no depoimento, o delegado solicitou à Justiça a prisão de Juliano. No pedido, registrou: “Nota-se inconsistência no relato da investigada Carina, em especial, em relação a sua não participação no roubou, pois não esclareceu a contento a extrema coincidência de um dos assaltantes ser justamente seu primo”.
Ao ser preso, Juliano prestou o depoimento que revirou a investigação. Na delegacia, disse que todos tinham bolado o plano juntos e que Anaflávia e Carina participaram ativamente de toda a ação.
O grupo entrou no condomínio escondido no carro de Anaflávia, um Fiat Palio, depois de seguir o Opala em que estavam Romuyuki e Juan Victor. Já Carina passou a pé pela portaria social, conforme mostram as câmeras de segurança. Eram 20h09, horário que já não havia mais porteiro no local.
Uma vez na casa, simularam ter rendido Anaflávia e Carina. Depois dominaram o pai e o filho e passaram a exigir a senha do cofre. Como nenhum dos dois sabia, os bandidos teriam torturado as vítimas a pancadas e asfixiados com um saco plástico, segundo Juliano. Ao chegar no local, a mãe Flaviana se desesperou e abriu o cofre. A suposta quantia de R$ 85 mil não existia.
Pela versão de Juliano, Anaflávia e Carina deram aval para as mortes. A filha teria concordado em executar os pais por causa de uma suposta herança de seguro de vida.
Por causa das novas acusações, o casal foi prestar novo depoimento e, desta vez, fez uma confissão parcial. As duas admitiram o assalto, mas alegaram que a ação saiu do controle. Segundo elas, a condição era que o roubo não envolvesse violência física ou xingamentos.
De acordo com o relato de Anaflávia e Carina, elas teriam declinado do assalto, após perceberam que Romuyuki e Juan Victor estavam sendo agredidos, e foram ameaçadas por Juliano. Em meio à guerra de narrativas, essa também é a versão adotada pela defesa do quinto preso. “O Guilherme jura de pés juntos que a ideia era só o roubo e que não participou das mortes”, diz José Gomes.
Contra o depoimento de Juliano, pesa o fato de ele ter apontado como partícipe – em vez do irmão Jonathan – um inocente. Os policiais viajaram mais de 470 quilômetros para prender Michael Robert dos Santos, de 26 anos, em Avanhandava, no interior de São Paulo. Ele chegou a passar três dias recluso até que os investigadores concluíram que pegaram a pessoa errada.
“Eu não tive envolvimento nenhum. Nada com nada. Confundiram tudo. Eles (policiais) fizeram o trabalho deles, mas confiaram no que estava preso. Ele (Juliano) já não tinha nada a perder, não custava nada acabar com a vida de outra pessoa”, disse Santos, ao Estado, no dia em que foi solto. Segundo conta, esteve na mesma cela de Juliano e chegou a perguntar por que ele o incriminou. “Ele me pediu desculpa.”
Para voltar para casa, Santos recebeu ajuda de custo dos policiais. Os agentes fizeram a vaquinha do próprio bolso.
Unidas
Com prisão temporária em vigor, Juliano e Jonathan estão reclusos em uma unidade de São Caetano do Sul, no ABC. Já Guilherme está detido no CDP de Pinheiros, na capital, porque também responde por flagrante de interceptação, convertido em prisão preventiva. Na casa dele, a polícia encontrou objetos, como o videogame e a TV, que pertenciam à família Gonçalves. O advogado contesta esse crime: “Como ele pode ter interceptado algo que ele mesmo roubou?”
Por sua vez, Anaflávia e Carina eram, na semana passada, as únicas presas na carceragem do 7.º Distrito Policial de São Bernardo do Campo. Em geral, o local serve para abrigar, provisoriamente, presas foragidas que foram capturadas e já chegou a receber mais de cem pessoas em anos anteriores, segundo funcionários.
Há quatro celas no local, mas uma está desativada por falta de energia elétrica. Quando o casal chegou, havia outras duas mulheres na carceragem - uma presa por uso de moeda falsa; outra, por estelionato. Elas, no entanto, já foram removidas do local.
Na ocasião, Anaflávia e Carina foram postas em celas separadas e eram obrigadas a tomar banho de sol em horários diferentes. Tudo para evitar que combinassem o depoimento para o inquérito. O delegado também mandou tirar as TVs de lá, a fim de impedir que o casal ficasse atualizado sobre o andamento do caso. Segundo relatam, as duas se comunicavam aos gritos e faziam juras de amor.
Agora, como os investigadores já consideram os interrogatórios suficientes, Anaflávia e Carina receberam autorização para ficar juntas na mesma cela. “Elas são muito educadas e corteses. Não há nenhum episódio que as desabone aqui dentro”, afirma um carcereiro. As duas passam os dias juntas e não teriam feito nenhum pedido à administração - como, por exemplo, ter acesso a jornais e revistas. “Elas estão fechadas no mundinho delas.”
O que mais chama atenção no 7.º DP, entretanto, é que até agora só os advogados de defesa foram vê-las na cadeia. “Nenhum familiar veio falar com elas, isso é bastante incomum. Geralmente sempre tem uma tia boazinha que vem visitar, mas desta vez nem isso.”
MSN
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